Esporte sem estádio?

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Estádios “só” de atletismo existem

Mais uma daquelas pausas no futebol para falarmos de outros esportes. Tenho acompanhado com minha família o Mundial de Atletismo que está sendo sediado nos Estados Unidos em Eugene, Oregon, e uma coisa me chamou a atenção logo no primeiro dia: o estádio, que tem uma configuração bem diferente daquela que estamos acostumadas.

Isso só é possível porque, como descobri, ele é um caso raro de estádio exclusivo para atletismo. Veja outros exemplos e curiosidades sobre o tema na sequência.


Hayward Field, o templo do atletismo

O estádio se chama Hayward Field e, pesquisando sobre o tema, descobri que ele é a “Meca do atletismo estadunidense” (e, sendo os Estados Unidos o país mais forte, de longe, no esporte, forte candidato a “Meca do atletismo mundial”).

Ele fica situado nas dependências da Oregon University, o que reflete a política dos EUA de incentivo aos esportes nas universidades, além de ser um fator para entender por que um mundial que costuma passar por grandes metrópoles mundiais foi parar numa cidadezinha desconhecida do interior do noroeste americano.¹

Renovado recentemente entre 2018 e 2020, ganhando um belo aspecto também em sua fachada, o estádio é de 1919, sendo exclusivo de atletismo desde os anos 1960, e ele já tinha essa configuração interna, além da importância, antes da renovação: sediou, entre outras coisas, as seletivas olímpicas dos EUA em 1972, 1976 e 1980, além de todas desde 2008.

Falando da organização interna do estádio, que tanto me chamou a atenção, em Hayward Field todas as modalidades são posicionadas ao centro do campo, ganhando centralidade para serem vistas da arquibancada.

Além disso, muitos espaços deixam de se sobrepor, garantindo que atletas possam competir e, sobretudo, treinar com mais facilidade (exemplo: o espaço de corrida do arremesso de dardo deixa de usar parte da pista de corrida).² Pista à parte, obviamente, o único espaço usado por mais de um evento é a gaiola de lançamento (usada para disco e martelo).

Isso, claro, só é possível porque o espaço central não é ocupado pelo campo de nenhum outro esporte.

O normal que vemos por aí é o estádio de atletismo ter a mesma configuração usada no Engenhão nos Jogos Olímpicos do Rio 2016: um campo de futebol ao centro (ou de futebol americano, rugby, lacrosse etc.) e as estruturas de atletismo posicionadas no entorno.

O Engenhão no Rio 2016. Uma curiosidade é que ele foi o primeiro estádio com pista moderna (sintética) em cor diferente do vermelho em Jogos Olímpicos. Embora não seja obrigatório, a maioria das pistas de atletismo usam a cor vermelha por tradição e por desbotar menos exposta ao sol

É algo tão natural isso que, vendo o Hayward Field, me ocorreu pela primeira vez que o esporte mais célebre das olimpíadas não costuma ter estádio próprio.

Só para deixar claro, não há nenhum problema com estádios de atletismo e futebol, como todos os Jogos Olímpicos, realizados com sucesso nesses palcos, provam. Eles são ótimos! Hayward Field me chamou a atenção pela curiosidade de ser diferente.

1- A cidade é tão pequena que a organização, ao invés de chamar o evento de "Mundial Eugene 2022" o batizou de Oregon 2022, ou seja, o nome do estado inteiro do qual Eugene faz parte, e que é bem mais conhecido.

2- Essa questão pode até ser mais importante para o treinamento, visto que não é tão difícil montar o calendário das competições de forma que eventos que usam o mesmo espaço sejam alocados em horários diferentes. Vide o fato que todos os últimos Jogos Olímpicos foram disputados em estádios que usam o campo central para outro esporte e não há problema algum.

Outros estádios e curiosidades

Em primeiro lugar, não é difícil entender por que isso acontece hoje em dia. O atletismo é um esporte célebre, claro, mas que demanda uma estrutura enorme e que não é tão popular a ponto de lotá-la com frequência. A saída é dividir o espaço com outros esportes populares, como o futebol.

Isso é tão normal que o próprio manual de construção de pistas de atletismo da federação internacional, em sua edição de 2008, trazia no seu “diagrama de layout padrão” um campo de futebol desenhado ao centro. A edição mais atual, de 2019, já eliminou o campo de futebol do diagrama.

Tendo um senso de realidade, o próprio Hayward Field, diga-se, não é tão grande: capacidade fixa para 12.650 torcedores, expansível até 25 mil.

Dando uma olhada se eu acharia outros estádios de uso exclusivo do atletismo, a não tão surpreendente resposta é que os achei justamente em outras universidades dos EUA. E, é preciso dizer, mesmo lá isso não é a norma: é muito comum que as pistas de atletismo universitário sejam construídas ao redor de um campo de futebol americano.


– A questão dos arremessos

Dar uma olhada nesses outros estádios exclusivos de atletismo (ou mesmo somente pistas, sem arquibancadas em volta) me ajudou a desvendar duas curiosidades que fiquei depois de ver e rever o Hayward Field no Mundial: por que o estádio é assimétrico e por que não se ocupa mais o campo central.

A resposta para as duas coisas está nas provas de arremessos longos (dardo, martelo e disco; o peso não vai tão longe, tanto que ele sempre ganha espaço próprio nesses estádios) e em uma escolha feita em Oregon para destacá-las.

Acima, o diagrama com as áreas de pouso atuais de Hayward Field já bem na borda da pista¹ e uma opção que poderia ser usada para aproveitar o espaço do outro lado: dividir o espaço entre arremesso de peso e a gaiola do disco, o que foi usado em algum evento de 2015. Mas isso, claro, diminui a possibilidade de mais atletas treinarem ao mesmo tempo.

Os recordes mundiais masculinos dessas provas de arremesso longo são de quase um campo inteiro de distância.² Então, é preciso deixar um grande espaço central para esses arremessos serem efetuados em segurança (e, devido ao ângulo de pouso ir abrindo, em Hayward Field o espaço do dardo e do martelo eliminam a possibilidade de colocar qualquer estrutura fixa do outro lado).

A pista de Duke é curiosa pela área central, de pouso dos arremessos, não ser verde. Já a de Minnesota deixa apenas um retângulo curto no meio, muito menor que um campo de futebol ou futebol americano; para isso, repare que a área de lançamento do dardo acaba bem antes do gramado começar (já prevendo que ninguém vai arremessar tão mal).

Algumas universidades dos Estados Unidos até fizeram um trabalho mais simétrico, posicionando a gaiola do disco/martelo e a pista do dardo uma de cada lado. Mas, em muitos casos, isso ou faz o dardo avançar sobre a pista, ou deixa o espaço aquém do recorde mundial.

Além da sua distinta pista cinza, o estádio do Arkansas é o mais perto de um estádio só de atletismo simétrico (junto à de Duke e de Minnesota acima). Ainda assim, a área de lançamento principal do dardo (que é a de baixo na imagem, a de cima tem pouso longo dentro da área de lançamento de peso) ocupa parte da pista de corrida, sobretudo a área do fosso dos 3.000 com barreiras.

Pode bastar para uma universidade que foque apenas em treinar alunos, mas Hayward Field foi feito para campeões olímpicos e, como ocorreu, receber o campeonato mundial.

Outras universidades foram até para uma tática mais ousada: ocupar completamente o espaço central, inclusive com o destaque para as provas de corridas de 100 e 110 metros com barreiras. O problema é que os lançamentos longos precisam ser colocados em outro lugar.

O estádio EB Cushing (Texas A&M) ocupou todo o centro da pista, inclusive com nova pista central para destacar os velocistas. Se você quiser ver as provas de arremesso longo, pegue seu binóculo que elas acontecem no campo de trás (setas na imagem áerea destacando as áreas de lançamento). Outro destaque do estádio são pistas de salto com vara em diferentes ângulos, para uso de acordo com o vento.

No estádio da AT&M, os lançamentos ocorrem na pista de aquecimento, que fica de frente para a arquibancada única, mas, claro, muito longe para as provas serem vistas em qualquer detalhe. Já na LSU, elas ficam num puxadinho que está atrás da arquibancada.

O estádio Bernie Moore (LSU) também ocupou todo o centro da pista. Se você quiser ver as provas de arremesso longo, nesse caso vai ter torcicolo: elas ficam num ponto cego para as arquibancadas (setas na imagem áerea destacando as áreas de lançamento).

A tática das duas é destacar os velocistas em detrimento dos arremessadores, já que os primeiros são muito mais populares. Mas para um estádio de nível internacional, como Hayward Field, esse tipo de discriminação contra arremessadores seria impensável.

Uma curiosidade é que o layout das pistas da AT&M e da LSU lembra bastante o de pistas de atletismo indoor. E, além das corridas serem em tamanhos diferentes (as retas, por exemplo, são provas de 60 metros, rasos ou com barreiras), quais as provas que existem num estádio, mas não no indoor? Arremessos longos, claro: dardo, martelo e disco. O arremesso de peso até rola.

Dito isso, o design assimétrico do estádio de Hayward Field é a única escolha possível? Não, dá para chegar a algo próximo ao layout de Duke (mostrado lá em cima), usando as medidas padrões mínimas. O que o design assimétrico de Hayward Field é, de verdade, é uma escolha inteligente.

Exercício feito com base no diagrama oficial da World Athletics de 2019. Repare que, embora com pouca margem, é possível fazer algo mais simétrico: dois eventos em cada ponta e duas pistas de salto em cada lado. Boa solução, por exemplo, para quando o estádio já for pronto e simétrico (por exemplo, o Engenhão poderia ter usado essa configuração exclusivamente nos Jogos Olímpicos, se deixasse de receber jogos de futebol no torneio). Mas, como veremos a seguir, simetria nem sempre é a melhor solução.

Primeiro, porque ela permite trabalhar com áreas que vão além das medidas mínimas, além de também ter espaços redundantes para treinamentos (de longe o maior uso da instalação na universidade). Depois que, convenhamos, passar só alguns arremessos para o outro lado não iria atrair grande público.³

Em novo momento sincerão, arremessadores (e saltadores em altura, também de “canto” de estádio) de fato não são lá os atletas mais populares. Claro que não é o caso de tirá-los do estádio principal, longe disso, mas seus eventos não atraem um grande público sozinhos. Então, é uma escolha inteligente reuni-los de um só lado, de forma a concentrar a torcida para todos os atletas dessas modalidades.

Essa escolhha ainda levou a outra igualmente sábia dos arquitetos: há menos arquibancadas do lado “vazio” de provas e lá fica o telão principal do estádio, de frente para a maioria das pessoas.

Ou seja: o título de templo mundial do atletismo para Hayward Field está mais do que justificado.

E é legal vê-lo num Mundial, já que dificilmente um estádio assim estará nos Jogos Olímpicos. Afinal, eles são os raros momentos que o atletismo precisa de estádios bem grandes, como os de futebol.

1- Repare que, apesar do dardo ir mais longe, é o martelo que ocupa mais espaço por sua gaiola estar bem mais à frente no campo. 

2- Eis os recordes enquanto escrevo. Disco: 74,08 m. Martelo: 86,74 m. Dardo: 98,48 m.

3- Nota: o manual da federação já referenciado ao longo do texto até cita que é bom para o público que haja uma quantidade mais ou menos igual de eventos dos dois lados da pista. Mas, como já exemplificado acima, ele considera isso para estádios que vão ser divididos com outros esportes e terão arquibancadas simétricas nas duas pontas.

Veja outros estádios de atletismo curiosos aqui.


EXTRA 1: Por que será?

Como vimos, os Estados Unidos não só gostam, como investem em atletismo. Por que será que eles tiveram mais que o triplo de medalhas que o segundo colocado no Mundial de Atletismo, né?

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Não basta esperar que um grande talento brote do nada como parece ser o caso no Brasil. Tem que investir.¹

1- Não é uma crítica direta à CBAt. Não tenho conhecimento para julgar o trabalho específico deles. Me refiro à política geral de baixo investimento em esportes olímpicos e à cobrança por resultado em época de Jogos Olímpicos e Mundiais por parte de uma torcida completamente alienada da realidade dos atletas.

Extra 2: Arremesso de peso, o irmão privilegiado

O atletismo possui quatro provas de arremesso: peso, disco, martelo e dardo. E você reparou que o peso é sempre tratado à parte?

Além do fato óbvio que suas marcas são menores, logo ele ocupa bem menos espaço no campo, o peso também é o tipo de arremesso onde o atleta tem maior controle do projétil, logo ele é mais seguro e demanda menor estrutura (não precisa de uma gaiola ou uma pista longa de corrida): é sério, um dardo, martelo ou disco descontrolado pode causar acidentes fatais.

O arremesso de peso tem estrutura tão simples comparada a outras modalidades que, embora o "design padrão" de pista indoor preveja um espaço específico para a modalidade (vide em seção anterior), há arenas como a acima que optam por montar uma estrutura temporária sobre a pista de corrida central. Um tablado de lançamento e uma rede de proteção resolvem.

Isso faz com que ele seja o arremesso sempre mantido onde se tem pouco espaço, como provas indoors ou naqueles estádios que, conforme vimos, jogaram os outros arremessos para outro lugar. E foi graças a essa simplicidade de estrutura que ele ganhou a honra de ser a prova escolhida para ser disputada nas ruínas de Olímpia durante os Jogos de Atenas 2004.

No lado positivo da manchete, foi a primeira vez que mulheres competiram em Jogos Olímpicos em Olímpia (na Antiguidade, o evento era exclusivo para homens). No lado negativo, vários atletas que participaram do evento histórico foram pegos no doping, inclusive os dois medalhistas de ouro originais.

Dizem que a proposta original era que o arremesso de disco fosse lá, já que ele existia nos jogos da antiguidade (o de peso, não), mas que mudaram de ideia justamente porque constataram que não havia espaço suficiente para o arremesso do disco, com as marcas modernas, serem executadas com segurança. Não duvido, mas não achei nenhuma fonte boa da época para confirmar o boato.


Extra 3: Pentatlo moderno

Do mais popular até os menos, é difícil pensar em esportes que não tenham um espaço destinado exclusivamente para si (vá lá, à exceção de esportes de rua, como corrida, ciclismo e triatlo). Um outro exemplo olímpico seria o pentatlo, mas até ele está mudando.

Pressionado pelo COI justamente pela falta de popularidade (logo, ameaçado de se ver fora dos Jogos Olímpicos), a federação internacional da modalidade (UIPM) tem sido rápido em propor e aprovar mudanças. Uma delas, proposta já para o Rio, foi fazer as provas todas no mesmo estádio (e que teria a corrida em pista olímpica normal, ao invés do cross-country habitual).

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Configuração de estádio proposta para Rio 2016. Não foi adiante.

No Rio, não rolou e, como em outras edições, as modalidades foram disputadas em diversos locais diferentes ao curso de dois dias.

Já em Tóquio, fora as provas de esgrima de ranqueamento, todas as outras (incluindo as provas extras da própria esgrima) foram no Estádio de Tóquio. Sim, construíram até uma piscina provisória no local, tablado de esgrima, estande de tiro, pista de saltos para cavalo e tudo. Ah, a corrida foi cross-country mesmo.

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Configuração de estádio usada em Tóquio 2020/21.

Ainda assim, a prova durou cerca de cinco horas e teve baixo público em um estádio gigante. A próxima proposta da UIPM foi mexer no evento, tanto na sua velocidade quanto na estrutura. Assim, a prova teria apenas 90 minutos no total e a estrutura seria bem menor, podendo ser numa arena compacta.

A UIPM tem noção que não tem público para um estádio gigante e sabe que o ambiente de um estádio assim vazio é ruim para o espetáculo: sim, menor pode ser melhor.

A ideia, claro, é atrair mais público tornando o esporte mais fácil de transmitir e acompanhar (você veria tudo em um mesmo lugar e no mesmo tempo que uma partida de futebol), além de criar mais dramaticidade na narrativa (e, sim, a própria UIPM fala isso abertamente). Outro efeito colateral positivo é deixar o esporte menos oneroso para os jogos.

Novo sistema e estádio próprio enxuto proposto para Paris 2024: aceito. Reparou que a área da disputa forma um pentágono? Pentatlo, pentágono, captou?

O sistema foi testado em alguns eventos e a proposta está aprovada para os Jogos de Paris de 2024 e a estrutura única para a modalidade, ainda que provisória, deve ser montada em Versalhes.

P.S.: E a UIPM não para. A próxima proposta da organização, mirando LA 2028, é trocar hipismo por prova de corrida de obstáculos (mais próximo de um parkour cross-country, não confundir com as provas de atletismo com obstáculo). Mas, ao contrário das medidas anteriores, essa encontra forte resistência por parte dos atletas.