O narcisismo dos juízes

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Opinião: VAR tira poder do árbitro de campo. E daí?

Todo comentarista de arbitragem, em geral ex-trabalhadores do ofício, parece concordar que uma boa arbitragem é quando o juiz passa discretamente pelo jogo. Mas temos visto que lá no íntimo, dentro dos seus egos, a história é outra. E o VAR tem sido o analista que tem fisgado esse complexo narcisista do inconsciente para o lado de fora de suas cabeças. Confira o porquê na sequência.

Não é raro ouvi-los esbravejando que o VAR “tira o poder de decisão do árbitro de campo”, “tem que se respeitar a decisão do árbitro”, “daqui a pouco o futebol vai ser apitado por uma máquina” e coisa que o valha. Sempre que possível, eles são rápidos em lembrar como o árbitro deve ser figura central no esporte. E, graças ao poder da mídia, é possível ouvir o mesmo de torcedores que vivem xingando quem eles estão defendendo justamente por errar.

Primeiro, vale lembrar que o sistema atual do VAR, e mesmo propostas alternativas como o uso via desafio (clique aqui), não tira o poder de decisão do árbitro de campo: a palavra final em lances interpretativos é dele. Mas e se um dia desenvolvermos um robô-árbitro, que nem precisa ser perfeito, basta ser melhor que o árbitro-humano, eis minha grande pergunta: e daí?

Mas e se um dia desenvolvermos um robô-árbitro, que nem precisa ser perfeito, basta ser melhor que o árbitro-humano, eis minha grande pergunta: e daí?

Me desculpem os árbitros, que ainda são sim figuras fundamentais em qualquer esporte e merecem ser tratados com todo o respeito: eles executam hoje uma função na qual qualquer um que já tenha se aventurado, mesmo numa pelada de fim de semana ou campeonato amador (meu caso), sabe bem o quanto é dificílima. Mas é preciso ter humildade e se colocar no lugar que lhes cabe.

Árbitros são facilitadores coadjuvantes do jogo, que só existem justamente pelo motivo que o jogo não consegue se apitar sozinho. Sim, isso é um fato histórico: a figura do árbitro só surgiu após verem que os próprios atletas marcarem as infrações não dava certo. Se der no futuro, por que não? Os protagonistas, quem de fato é insubstituível, são os jogadores.

Árbitros só existem porque o jogo não consegue se apitar sozinho. Os protagonistas, quem de fato é insubstituível, são os jogadores.

O processo de substituição gradual de ferramentas e pessoas com o avanço tecnológico é comum (e benéfico) a qualquer esporte. Sensores muito mais precisos aposentaram o uso de trenas e cronometristas no atletismo; aposentaram também o árbitro de rede no tênis (não o central, e sim a figura que ficava com a mão na rede para dizer se um saque tocou nela). E, vale lembrar, se tudo isso falhar ou o campeonato não tiver dinheiro, volta a trena, volta o cronômetro, volta o cara para a rede.

A grande questão aqui é o que é mais importante para o esporte: preservar a hierarquia do juiz ou a justiça do jogo? No hóquei, por exemplo, a decisão final após revisão do vídeo saiu das mãos dos juízes em quadra na NHL para um pequeno grupo de juízes que ficam reunidos na sede da liga em Toronto, onde todo o VAR é feito na mesma sala: acharam que isso era mais justo e padronizava interpretações de jogadas semelhantes.

E a tão propagada perda da humanidade do jogo? Com todo o respeito, o fator humano que realmente importa no futebol e em qualquer esporte é o do atleta. O objetivo do futebol em última instância, afinal, é ver quem é mais habilidoso com a bola, e não ser uma competição para medir a capacidade humana de apitar uma partida.

Não é uma competição para medir a capacidade de apitar. Com todo o respeito, o fator humano que realmente importa é o do atleta.

Fazendo um paralelo, eu prefiro o diagnóstico mais preciso de uma máquina de ressonância magnética do que a opinião médica baseada em uma simples apalpada onde dói. Imagino que todo médico em sã consciência concorde comigo, sem jamais pensar no risco de desumanizar a medicina.

“Futebol não é ciência, é arte”, alguns poderiam arguir. Concordo metaforicamente (futebol é um esporte, então o elemento de justiça é mais relevante que o da arte), e realmente temos sérios problemas em associar arte à ausência de humanidade. Mas, novamente, e também metaforicamente: o artista é o jogador, enquanto o juiz é no máximo o curador do museu; uma figura que se faz importante apenas quando necessária, mas não um pré-requisito para a arte acontecer.

Dito tudo isso, é sempre bom reforçar para acalmar os ânimos dos detratores do VAR: sim, o sistema é novo e ainda tem muito a melhorar. E tomara que melhore ao ponto de, num futuro distante, chegarmos ao nosso hipotético árbitro-robô. Justiça está acima de qualquer ego.