O Culto América

A estranha oração (e política) da abertura da Copa América

Assistindo à abertura da Copa América na última quinta à noite, me bateu uma grande surpresa ao ver dois homens em campo para fazer uma breve oração, um em espanhol, o outro em inglês. E ficou claro que eles estavam ali só para aquilo (não eram dirigentes que se empolgaram no discurso).

O que já não achei surpreendente é que, sendo a oração de cunho cristão evangélico, poucos se preocupariam com o fato.

Mas houve aqueles que se preocuparam e levantaram motivos obscuros daquela estranha presença. É isso que você confere na sequência, juntamente com uma reiteração do que deveria ser óbvio: por que esse tipo de manifestação religiosa não deveria acontecer num evento esportivo.


A relação dos pastores com Alejandro Domínguez

Quatro dias após a abertura, um dos amigos para o qual comentei o estranhamento com a situação, me enviou um grande levantamento do Twitter do Copa Além da Copa. Com todo o respeito ao trabalho deles, como não havia link para fontes das informações, eu busquei confirmá-las em outros meios de notícia (algo que você deveria fazer com qualquer comunicador, inclusive eu), e elas se confirmaram.

A figura principal ali era o pastor Emilio Agüero Esgaib, ex-lutador paraguaio de kickboxing que hoje comanda a igreja “Más que Vencedores” no país, igreja essa que é frequentada pelo também paraguaio Alejandro Domínguez. A pessoa que passou a mensagem em inglês na sequência era o também pastor Adolfo Agüero Esgaib, irmão de Emilio.

Se a notícia parasse por aí, já seria bem problemática: o presidente da Conmebol usando a influência do seu cargo para dar palco mundial a alguém do seu relacionamento pessoal (e nós ainda vamos entrar no fato do cunho religioso ser um agravante). Mas a questão vai além de uma forma que eu não poderia imaginar.

Primeiro, pelo lado da própria figura controversa que é o pastor Agüero, com diversas declarações misóginas, homofóbicas e transfóbicas na sua história.

Depois, pelo lado político (que os paraguaios me desculpem, mas não acompanho a política interna de vocês tão de perto): Agüero é figura extremamente próxima de Horacio Cartes, ex-presidente paraguaio e atual presidente do Partido Colorado, o mais influente do país.

E a rede volta a se fechar pois Cartes é notoriamente próximo de quem? Alejandro Domínguez! Cartes era sócio de seu pai, foi uma das influências por trás da entrada do Paraguai na candidatura para a Copa de 2030 (entrada forçada por Domínguez) e, correm boatos, até considera Domínguez como opção para as eleições presidenciais de 2028.

Ou seja, pessoas influentes do Paraguai que comandam grandes instituições futebolísticas, religiosas e políticas andam trocando figurinhas e usaram a Copa América de plataforma.


O espinhoso tema religião

Voltando ao tema religião, por que esse seria um problema? Muitos até apontariam que a mensagem do pastor, citando a Bíblia, falando de Jesus e, de maneira bem geral, mandando um “Deus abençoe os países da América” seria inofensiva.

Pois é, se essa última frase tivesse vindo no meio do discurso de algum dirigente (talvez do próprio Domínguez), fosse de fato inofensiva. Mas, como os pastores estavam ali só para isso, houve um declarado ato religioso, o que foi apontado por alguns como em claro conflito com os regulamentos da Fifa.

O próximo passo é ir além e entender por que essa regra existe. E, embora seja difícil ter que admitir que a Fifa está certa, há um bom motivo para isso: quem vai julgar o que é uma mensagem religiosa inofensiva ou não? Certamente, não acho que o senhor Alejandro Domínguez, em toda a sua sabedoria, esteja apto para isso.

É algo que reflete a regra de dar cartão amarelo a quem tira a camisa na comemoração de um gol. Entre as cinco justificativas dela, está evitar a exibição de mensagens por parte dos jogadores. Isso parece antipática para casos em que eles homenageiam filhos ou colegas falecidos.

Mas e se a mensagem fosse política? E se fosse polêmica? É muito mais pragmático estabelecer “ninguém tira a camisa” do que pedir que o árbitro leia a mensagem e faça um juízo de valor dela (sendo que a mensagem poderia ser de um tema que ele sequer é capacitado para opinar, como a política de outro país).

E aí entra outra questão, que eu sei que é bem difícil: se colocar na posição de outra pessoa. Será que uma mensagem evangélica na Copa América é de fato inofensivo para comunidades que se sentem perseguidos por evangélicos, como praticantes de religiões de matrizes africanas que tiveram seus templos quebrados? Ou mesmo pessoas de outras denominações, ainda que não tenham passado por eventos traumáticos como esses.

Vamos fazer o seguinte exercício para demonstrar melhor esse ponto: fosse Alejandro Domínguez iniciado no candomblé como filho de Exu, e levasse o babalorixá do terreiro que ele frequenta para mandar uma mensagem, ainda que fosse uma simples benção, qual repercussão você acha que o evento teria tido? Ou se ele fosse mulçumano e levasse o imã de sua mesquita?

Manter a religião fora de eventos oficiais não é ser contra ela; é apenas uma forma pragmática e de fácil controle de tentar respeitar a todas as religiosidades.1

Voltando ao paralelo clássico religião-política como dois assuntos espinhosos, num vídeo de Alfie Potts Hammer (canal HITC Sevens) provocativamente entitulado “Quais políticas são permitidas no futebol“, ele levanta a seguinte reflexão sobre o tema: quem se diz contra misturar política com futebol não é de fato contra isso, e sim contra misturar futebol com a política que se discorda; quando a mistura é com a política que se concorda, ela nem é percebida.

Também em paralelo com a conclusão do vídeo supracitado, futebol e política são indissolúveis, e seria impossível manter qualquer ato político-religioso fora do futebol (como demonstrações pessoais espontâneas), mas também seria indesejável fazer um “libera geral” e transformar eventos em palanques para partidos, cultos ou seus líderes específicos, então é preciso operar nessa área cinzenta.2

O meio termo? Proibir manifestações oficiais. Pode parecer duro, por vezes antipático, mas é a solução mais funcional que existe até hoje. E que foi quebrada simplesmente pelo presidente de uma das seis confederações continentais.


– Notas:

  1. Inclusive, claro, o direito à não religiosidade.
    ↩︎
  2. Já que usei muito o vídeo de Hammer como referência, eis uma parte importante dele: a aceitação de algumas manifestações de fato ocorrem de acordo com os avanços culturais de cada sociedade. Nas ditas ocidentais, por exemplo, manifestações apartidárias pró-direitos humanos (ex.: antirracismo, anti-homofobia/transfobia) já são bem aceitas, inclusive de maneira institucional.

    Da mesma forma, uma eventual benção ecumênica seria mais aceitável, desde que envolvesse uma meia dúzia de religiões de diferentes frentes (digo, não adiantaria serem seis pastores de diferentes denominações, sendo todas evangélicas).
    ↩︎